quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Um Amor Mouro - II

O QUARTO DE CLARISSE – ANTES DE DESCER.
“Trinta minutos antes de todos se jogarem, vinte segundos antes de se olharem, uma eternidade para se reencontrarem. Milhões de vozes, gritos e chamados perdidos, revelações feitas às pressas, brigas esquecidas, e sofrimentos apaziguados. Era a hora da nossa morte. Ele me diz que é insano tudo aquilo, tudo que vivemos, apouco estávamos os dois deitados, nos amando. Agora ele se segurava na proa, procurando coragem para pular. Eu o olho, o revisto todo, tento guardar tudo que posso em minha fraca memória. Seus pulsos e calcanhares cheios de cascões de feridas recém-saradas, seus lábios grossos, sua cabeça redonda, roupa suja e rasgada, um olho torto, um nariz amassado e com seu interior quebrado. Uma beleza escondida como se apenas eu pudesse decifrar todos aqueles erros e desproporções, mas olhá-lo era tão bom.”
“Ele gritava, desce, desce minha clara, desce pra mim! E dentro de mim lhe gritei o meu amor, o incentivando a esquecer do medo e a sorri, mas apenas ele podia me ouvir. Porque ninguém via a pessoa que existia? Porque meu pai, o dono de mim, o dono dessa parte que saiu dele e ganhou vida e fala, não podia sentir o mesmo ardor no peito como eu? Eu o amo pai! Eu o amo demais! Amo tanto que sem ele não a vida. Mas não me ouviam, eram muitos gritos, o meu virou apenas mais um.”
Um estrondo me fez saltar da cadeira. Quando procurei pelo quarto e vi a minha cama com uma das suas pernas quebradas e uma moleca se escondendo de mim, só faltei gritar de ódio.
- Oras! O que te deu criatura? – esbravejei olhando a moleca tentar levantar a cama com seus braços magricelas.
- Eu... Por favor... – ela tentava, mas a cama não se mexia.
- Você não pode entrar assim, não aqui. Eu estava fazendo algo muito importante, se erro mais uma vez sou capaz de afundar esse barco! – a menina se encolheu mais, com medo.
Dei risada do seu medo e da sua inocência em acreditar que eu tinha todo aquele poder. A ajudei a se levantar, e ela arregalou os olhos para minhas mãos em seus braços.
- Estou brincando. É que eu tento escrever, mas sou péssima... Não conte a ninguém! – lhe pedi do meu jeito dramático e ela saltou negando com os olhos assustados.
Ela não era tão pequena assim, deveria ter minha idade, só que não deveria ter se alimentado direito. Meu pai gritou do lado de fora da minha porta e ela tremeu tanto que me incomodei. Alisei seus braços, fiz um carinho em seu rosto magro, ela não pareceu gostar, mas não se distanciou.
- Eu não vou contar nada, espero que você faça o mesmo. – ela olhou para os meus papéis sobre a mesinha e a perna da cama no meio do quarto. – Sobre os dois.
Meu pai continuo a berrar no corredor. Estava irritado com algum dos empregados do barco, humilhou uma mulher e bateu em alguém. A menina não parecia interessada em sair do quarto nem tão cedo, e meu pai estava apenas no começo de sua revolta. Abri a porta e no mesmo estante o som parou.
- Papai, eu quebrei a cama. – disse antes de olhar todo o corredor.
Um homem segurava outro pela garganta e lhe apontava uma pequena faca. Uma mulher estava sangrando e praticamente nua, um de seus seios dependurava de sua camisa rasgada. Havia mais homens a sua volta e meu pai passou por todos até me alcançar com seus olhos, me olhou de cima a baixo e pareceu ficar envergonhado.
- Minha filha, que trajes são esses. – eu sabia que estava de camisola, mas não me preocupei.
- Papai, eu devo me preocupar com minha camisola? – apontei a mulher.
O homem puxava seu cabelo, tentando a arrastar para longe dos meus olhos. Passei por meu pai, pelos homens que brigavam, pelos outros que estavam prestes a brigarem comigo e arranquei a mulher das mãos do homem. A empurrei para meu quarto, antes que meu pai se pronunciasse e bati a porta.
- Ela ira me ajudar a conserta a cama! – gritei.
Ele não ousaria invadir meu quarto. Se o fizesse assim que chegasse em casa, contaria tudo a mamãe e ele iria para o tronco!
- Anda menina, pega água e me ajuda a limpar a moça. – disse a ela, que ficou me olhando sem entender nada.
Abri minhas gavetas e não achei nada que pudesse servir àquele corpo cheio de curvas. Dei-lhe meu robe e enxuguei suas lágrimas. A mulher em silencio continuou. Parada a minha frente, olhava para o chão, tornei a enxugar suas novas lágrimas.
- Mas que demorada tu és moleca! Cuida dos machucados dela, isso não sei fazer. – fiz uma cara de pesar, a menina começou a fazer o que lhe pedi com muita falta de vontade.
Assim que tudo ficou nos conformes, esperei perto da porta que as duas se fossem. Mas não saíram, pareciam querer ficar ali, escondidas. Mas eu queria minha paz, meu quarto vazio, apenas comigo dentro dele.
- Eu vou me trocar. – tirei a roupa no canto do quarto, e a moleca deu um jeito de me ver através do trocador.
Olhava-me com curiosidade e de nariz torcido. Eu não lhe fazia o tipo de beleza ideal. Assim que acabei abri a porta e as duas se grudaram em minha retaguarda, andaram junto de mim a cada passo que dei.
- Onde esta tua mãe? – perguntei a menina, e ela disse algo parecido com um “não tenho” carregado no seu idioma.
A moça sabia que também estava na mesma. Não me interessava saber o que faziam nem de onde tinham saído, só queria me livrar delas e ir para o meu quarto.
- De onde vocês saíram? – perguntei já cansada de tanto rodar pelo barco.
Ficaram as duas caladas. As duas cabisbaixas e medrosas, atrás de mim, correndo de quem passava, e dos homens que queriam mais não podiam mexer com elas. Eu deveria chamar meu pai, chamar alguém que cuidasse das duas, mas se o fizesse não me libertaria mesmo de nenhuma. Dominariam minha mente.
- As duas podem ficar comigo – a menina mostrou uma empolgação verdadeira. – Mas só por hoje.

Nenhum comentário: